
Quando chega a Lisboa, a prima América não nutre ambições à la Rastignac: não pretende conquistar a grande cidade, mas sim fundir-se nela e usufruir, com deleite, das liberdades que a sua condição de cidadã lhe garantem. Mas eis que as águas da sua existência, que se pretendiam límpidas, são turvadas por acontecimentos e encontros que fazem supor a existência de um segredo capaz de suscitar pavor e suores frios, um segredo com ramificações profundas que ligam os estratos mais inacessíveis da sociedade ao vizinho do outro lado do patamar. Talvez por estar mergulhada na história, América não se apercebe de como esta soa a falso e emite o odor das coisas viciadas pelo uso, mas há quem o faça e ponha por escrito o seu cepticismo. Há limites para a paciência de um editor. Os apelos para que aquela que escreve a história da prima América abdique dos seus maneirismos e obsessões e vise a sinceridade não parecem cair em saco roto, a julgar pelas marcas deixadas no espírito de um jovem professor que percorre Portugal de Sul a Norte, de camioneta, sem a mochila (roubada) e envolvido em combate desigual com os efeitos secundários de um analgésico muito potente.
O seu corpo, o seu olhar e o seu quotidiano eram agora solidários com os edifícios, com as estruturas, com as fronteiras materiais. Lisboa era a sua cidade. A familiaridade com a urbe grande e intimidante trouxera-lhe uma euforia que se estendera pela sucessão das semanas. É próprio dos estados de euforia serem limitados no tempo, e típico dissiparem-se de forma abrupta e propícia a ressacas melancólicas. Naquele momento, atravessando o Jardim Constantino, América deu por si a recordar os tempos em que Lisboa era uma estranha, quase uma adversária, e em que a outra face da estranheza era uma agudíssima consciência de si mesma, imersa no desconhecido, exaltada pelo apetite da descoberta.